Ofício do aluno e sentido do trabalho escolar – Perrenoud (1995)


Muitas vezes me deparei com diversas fichas de inscrição para cursos, ou para receber notícias em meu email, ou para tantos outros motivos que nem sei e nem me lembro, e essas fichas solicitavam que informasse minha profissão. Sempre achei muito estranho assumir minha profissão como “estudante”. Mas então estudante é uma profissão? Quando se formalizou essa carreira? De onde veio? Tem seus direitos assegurados? Ou seria uma atividade que estigmatiza um cidadão por este ainda não ter uma ocupação “formal” no mercado de trabalho, seria ela inferior à uma profissão? Por quê ainda alguns torcem o nariz e dizem: “é só um estudante!”?

São tantas dúvidas que minha conclusão não pode ser outra: o “ser estudante” é um grande paradoxo. É uma atividade que pode ser categorizada como profissão mas ao mesmo tempo não tem o mesmo valor de um oficio comum conhecido no mercado de trabalho. Quando você diz, “sou cozinheira, gari, secretária, dentista”, etc. e quando diz “sou estudante” tenho a plena certeza que, para o ouvinte em questão, estas atividades não tem o mesmo valor. O ser estudante parece ser apenas um meio para algo maior, e não algo em si. É uma fase transitória. Me parece que o "ser estudante" aqui no Brasil se torna algo relacionado a desvalorização da educação aqui em nosso país, pois quando você afirma "sou estudante" ou "sou professor" as pessoas perguntam: "mas você só estuda?" Ou "mas você só dá aulas?" ...

Me parece que um estudante é, para a grande maioria, um ser incompleto, um ser em constante formação, mas ora, não é assim em toda atividade? Caso um profissional fique estagnado em seu oficio logo será superado pelos avanços tecnológicos, novas práticas, novas descobertas, logo haverá uma desvalorização de seu oficio. 



Assim, Perrenoud afirma que “o aluno é uma pessoa que pratica seu ofício à sua maneira. Em compensação qualquer ofício modela, por sua vez, aquele que o exerce, mas a pessoa nunca é redutível ao seu ofício” p. ( 202). O autor considera que o ser aluno é um ofício, no entanto que o sujeito não assume o papel de aluno fundindo-se com o seu ser. Fala também que o aluno aprende seu ofício por imitação dos vizinhos, por um “fazer como os outros” “o ofício dos alunos aprende-se no local de trabalho imitado os outros” (p. 203).

Penso todavia, que nesta ambiguidade, a atividade de ser aluno/estudante não deveria ser considerada como uma profissão. Penso que até mesmo o nome que indica essa determinada categoria social é inadequado. Soa melhor ser “aprendiz”, aprendemos durante a vida toda, o aprendizado não está limitado apenas a frequentar uma escola; aprendemos em casa, na rua, no clube, na igreja, na quadra de esportes, no parque, em tantos lugares e em tantas idades diferentes, penso que ser estudante jamais deveria ser categorizado como um ofício.

O autor fala que qualquer indivíduo é único, singular, mas que existem denominadores comuns entre todos, tais como a geração, a família, classe social, a comunidade que gera um habitus, que sem serem idênticos apresentam semelhanças. Cita três tipos de influências para a formação de suas características pessoais:
- Da família e grupo social que faz parte;
- das turmas que participa e professores que teve no período escolar;
- Grupo de pares, os outros alunos.  

Aprende seu ofício por meio de:
- Apropriação de representações sociais que circulam entre os seus pares e entre os adultos;
- Imitação, impregnação mais ou menos conscientes de formas de fazer, que decorrem na aula e incarnam a realidade do trabalho escolar;
- Interiorização de limitações objetivas que induzem respostas adaptadas às situações escolares.

Se o estudante desenvolve alguma atividade extra classe ou fora da sala de aula, até porque hoje atualmente o local que é mais valorizado como espaço de aprendizagem é a classe/sala de aula, seja uma pesquisa, ou um estágio remunerado, então penso que este é sim um ofício, a pessoa está produzindo algo e gerando riqueza para alguém ou para si, então acredito que poderia ser categorizado como uma profissão. Apesar dos diversos tipos de estágios que os estudantes desenvolvem serem considerados uma profissão, e terem inclusive uma Lei de Estágio que é especifica para a atividade, estão longe terem seus direitos parecidos com os de um trabalhador comum. Muitas vezes, as empresas, órgãos de pesquisa dentre outros deixam de contratar trabalhadores que são regidos pela CLT para “economizar” e acaba por assinar contratos com estagiários que, na maioria dos casos, desenvolvem as mesmas funções que um empregado comum, com a diferença de que não tem benefícios assegurados pela empresa ou governos e muito menos salários equivalentes ao de um profissional comum.

Percebe-se novamente a desvalorização do oficio de ser estudante quando o senso comum aponta os resultados do trabalho (afinal é considerado um ofício!) de um estagiário como incompleto, insuficiente, errado, e ainda trata o ser social estudante/aluno, na maioria das vezes como se fosse dotado de certa incapacidade intelectual para realizar tarefas no ambiente de trabalho, se comparado com um profissional regido pelas leis da CLT. 


Mas este sujeito resolveu realizar este estágio, como o nome bem diz, uma “passagem” com o intuito de aprender algo? Como poderia ele estar pronto para tal função? Em alguns casos os jovens assumem tal posição mais por questões financeiras geradas pela desigualdade social do que realmente pelo desejo de aprenderem algo fora das salas de aula, em um ambiente “de trabalho” onde, teoricamente, se poderia aprender, a partir da prática, uma profissão.

Percebe-se que novamente há mais uma desvalorização do “ser aluno/estudante”, pois seu ofício, apesar de ser considerado uma profissão, é tido como inferior, porque são seres inacabados, estão em transição para um mundo adulto que, quando chegarem lá, talvez possam ser mais valorizados e terem, ao realizarem tarefas para terceiros, um salário à altura. Sabe-se que desde muito antes do período da revolução industrial muitas crianças já trabalhavam, mas neste período, muitas vezes, morriam ou tinham seus corpos mutilados por máquinas e recebiam apenas a metade ou menos da metade do salário de um homem adulto.

Neste sentido é possível refletir e acreditar que o trabalho de jovens e mulheres continua sendo inferiorizado, mas adquiriu um tanto de sofisticação e foi mesmo mascarado para ser aceito no mundo adulto como legal e institucionalizado. As crianças continuam trabalhando dentro de casa, cuidando de seus irmãos quando os pais trabalham e realizando afazeres domésticos, mas não são remuneradas por isso; ou ainda ajudam nas lidas do campo, ou ainda realizam tarefas caracterizadas como trabalho escravo.

Em determinado momento, houve em várias partes do mundo, uma escolarização para que fosse aplicada às crianças e jovens, e esta escolarização confinou a aprendizagem e ensino, que antes se adquiria com a família, comunidade, líder religioso e/ou outras lideranças de grupos, dentro de caixotes chamados salas de aula. Homogeneizou crianças, didáticas, saberes, disciplinas, ambiente, professores e o mundo perdeu parte de uma imensa riqueza de conhecimento gerada através da criatividade, espontaneidade, e diversidade. A escolarização criou a categoria social “aluno/estudante”, pois aprendizes todos os são durante toda a sua vida.

Pois bem, este papel que muitos jovens têm que assumir, o de aluno/estudante e estagiário, em detrimento do personagem de “aprendiz” custa-lhes sua autoestima, não são bons o suficiente para o mercado de trabalho, mas também não são bons o suficiente para as escolas, pois muitos professores sempre os desmotivam, avaliação em forma de notas não é incentivadora ou indicadora de que adquiriu algum conhecimento, além de ser um método que incita a comparação entre a performance dos alunos. Sempre subjugados, não pertencem a nenhum lugar no ‘mundo dos adultos” pois nunca são bons o suficiente para estes outros. Ainda tem que lidar com as mais diversas desigualdades sociais e muitas vezes vão para a escola, que deveria os acolher, já que foi criada para tal, com fome, ou sem material.

De todo modo, Perrenoud teta desvendar o universo do aluno e tenta descrever como se dá a forma com que se habitua ou que interioriza a ser um aluno/estudante, quais as práticas, os modos, as técnicas, o que o influencia para compor sua personalidade-aluno.

Ele descreve que inicialmente há o tempo da estranheza, do qual o estudante entra num mundo desconhecido rompendo com o mundo familiar; o tempo aprendizagem, no qual se adapta e produz um certo conformismo, e por último o tempo de uma filiação que é um período de interpretação ou até mesmo de transgressão das normas instituídas (p. 205).

Sobre a pedagogia o autor diz que “ser aluno em qualquer pedagogia é sempre o fazer” (p.2017) “a relação pedagógica e o ofício de aluno estão estreitamente imbricados” (p. 209).

O autor fala também da importância de chamar a atenção dos professores para o ofício e aluno e para a relação com o saber. “Embora o saber esteja no centro da identidade da escola, esta raramente o torna como objeto de uma interrogação aberta” (p. 202). Fala ainda do ofício de aluno e de como cada um se apropria do saber e assimila as técnicas para adquiri-lo: “É numa certa solidão que cada um se esforça, longe das normas didáticas e das declarações de intenções, por compreender o que é o saber, para que serve, e como é que o indivíduo se apropria dele” (p. 212).

Dentro de sala de aula, face a esta crítica de como se adquire o saber, Perrenoud afirma que o saber aparece como um valor em si mesmo, um investimento para satisfazer as expectativas dos adultos. Por isso os alunos aprendem a: Renunciar e não ir a fundo em uma questão; calar a sua curiosidade; a exprimir o que é conveniente e não o que pensam; a não reportar os saberes às suas condições sociais de produção (p. 213).


Daí resulta uma negociação entre professores e alunos, dado que ambos vivem em uma ambiguidade: podem ficar sem trabalhar e estudar que logo vão querer retornar às suas atividades, mas quando retornam, voltam a sonhar com as férias ou com a não obrigação de cumprir suas funções rotineiramente. “Síndrome do prisioneiro que sonha com as correntes quando á foi libertado” (p. 214): é um modus vivendi que “consegue evitar mais habilmente tanto os excessos de laxismo como os de severidade” (p. 217).

Sobre as desigualdades o autor afirma que “nem todos os alunos são iguais na escola, que – quando ela pratica a indiferença pelas diferenças – transforma estas desigualdades de ordem extraescolar em desigualdades de aprendizagem, logo em sucessos e insucessos” (p. 217), o que remete ao fracasso escolar e aos fracassados, e também as questões das classes sociais de onde provém os alunos, pois é muito claro que se descende de uma família de classe abastada tem muito mais chances de ter sucesso na aprendizagem em contraponto a uma aluno trabalhador por exemplo, que muitas vezes abandona os estudos para trabalhar, e nem sempre tem um ofício certo, uma carreira ou profissão, muitas vezes ocupa subempregos ou bicos, já que não tem opção e precisa contribuir no núcleo familiar. Muitos anos mais tarde, ou mesmo quando tem condições financeiras para pelo menos sobreviver retorna à escola, mas agora na Educação de Jovens e Adultos.

Acabo me lembrando de um livro que já pude ler fragmentos "A Geografia do Aluno Trabalhador" - Marcia Spyer, neste livro são abordadas como são as percepções de alunos que vivem em área rural e urbana, como encaram o dia a dia, como acompanham a a natureza existente no campo, tais como o sol, a chuva, as estações do ano, os rios, a colheita e plantação e como esta sabedoria presente em sua vida pode ser aliada no ensino da geografia. Por outro lado o aluno trabalhador da cidade possui maior conexão com a orientação, os deslocamentos, as redes de trafego, as regiões, já que este aluno, muitas vezes, enfrenta uma rotina dentro da cidade em que ele é levado a estar em contato com muita informação, em se locomover em coletivos, em movimentos pendulares e outros tipos de relações com o cenário urbano. toda essa riqueza de vivência é muito útil para o ensino da geografia.


Perrenoud termina seu texto afirmando que “nem todos os alunos são iguais face ao ofício de aluno e à construção do sentido” (p. 220).

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