TEXTOS AUXILIARES: Cotidiano e práticas sócio-pedagógicas - Marli E. D. A. André (1992)


O espaço da escola é lugar onde ocorrem experiências riquíssimas e que devem ser investigadas e estudadas. A etnografia pode ser entendida como “o estudo descritivo das diversas etnias, de suas características antropológicas, sociais”, e neste sentido, esta pratica pode auxiliar no estudo do cotidiano na escola.

O interesse dos educadores pela Etnografia torna-se muito evidente no final dos anos 70 e tem como centro de preocupação o estudo da sala de aula e a avaliação curricular, porém era apenas calcado nas observações e registros em sala de aula chamados de “análises de interação. Tendo como fundamento os princípios da psicologia comportamental, eles serviram não somente para estudar as relações professor-aluno em sala de aula mas também para desenvolver habilidades de ensino ou medir a eficiência de programas de treinamento de docentes.

Segundo a autora, este método se mostra insuficiente para estudar todas as nuances do espaço escolar e sugere a abordagem antropológica. Para entender e descrever a cultura escolar o pesquisador faz uso da observação participante, que envolve registro de campo, entrevistas, análises de documentos, fotografias, gravações. Os dados são considerados sempre inacabados. O observador não pretende comprovar teorias nem fazer generalizações estatísticas.  Ele busca compreender e descrever a situação, revelar seus múltiplos significados, deixando que o leitor decida se as interpretações podem ou não ser generalizáveis, com base em sua sustentação teórica e sua plausibilidade

Muitos estudos e pesquisas produzidos na área de educação na década de 80 são classificados como “qualitativos" e/ ou etnográficos. O que se verifica, no entanto, é que a grande maioria envolve dados de campo, sistematizados em forma de descrições que acrescentam muito pouco ao que se sabe ou conhece ao nível do senso comum. É a empiria pela empiria. Há coleta de uma grande quantidade de dados e o autor espera encontrar algum significado nestes dados, espera que por si produzam alguma teoria.  Mas é evidente que sem um referencial de apoio que oriente o processo de reconstrução desses dados não há avanço teórico -  fica-se na constatação do óbvio, na mesmice, na reprodução do senso comum.

Essa confusão entre procedimento etnográfico e método de investigação acaba por limitar sobremaneira as contribuições dessas pesquisas em termos de geração de novos conhecimentos. Essa concepção limitada tem produzido trabalhos no cotidiano da escola, mas não sobre o cotidiano da escola. Muito pouco esforço tem sido feito em termos de construir a categoria "cotidiano escolar”, que falam do cotidiano em geral e tentar aplicá-las diretamente, de forma dedutiva, na análise da escola: O que caracteriza a vida escolar cotidiana? Que elementos são específicos da instituição escolar, isto é, só aparecem na escola?

Precisam, em vez disso, tentar ir bem fundo na análise dos elementos que compõem esse cotidiano, questionando suas origens, seu significado, suas limitações e principalmente suas vinculações aos objetivos sociopolíticos e econômicos que os determinam naquele momento histórico. Para

A autora destaca três pesquisas para embasar sua ideia de que as pesquisas sobre o cotidiano escolar vai bem mais além do que a coleta exaustiva de dados e as observações em sala de aula:

A primeira pesquisa foi realizada em 1983 e tinha o objetivo de conhecer o trabalho desenvolvido por professoras que estavam tendo sucesso na alfabetização de crianças da escola pública, apesar dos limites de suas condições de trabalho e formação.   Para a coleta de dados foi utilizado basicamente a observação das aulas, tendo como alvo as práticas de trabalho da professora.

As conclusões do estudo apontaram, em primeiro lugar, uma inter-relação dos elementos que caracterizam a prática pedagógica. Esses aspectos são: conteúdo, disciplina, afeto, aprendizagem, não é possível compreender a questão da disciplina pois aparecia intimamente associada ao modo de lidar com o conteúdo e às manifestações afetivas da professora, levando, em consequência, a um interesse e a uma vibração dos alunos por aprender.

Outro resultado foi a diversidade existente entre as professoras consideradas bem sucedidas. Por um lado, havia aquelas que mais se aproximavam ao tipo "tradicional", seguindo de perto a cartilha, obedecendo a uma sequência de atividades bastante rígida e interagindo com as crianças de forma mais autoritária. Por outro lado, havia professoras que desenvolviam atividades bem criativas e estimulavam a participação e a imaginação das crianças. Havia ainda outras que combinavam uma forma mais "convencional" de atuação com situações de estímulo à inventividade e à participação. Verificamos apenas que algumas tinham um apoio pedagógico e administrativo bastante definido e outras não tinham qualquer suporte. Verificamos também que algumas escolas possuíam uma proposta pedagógica e outras não. Entretanto, estas considerações foram insuficientes para explicar o desempenho das professora e investigação da prática docente não deve se esgotar no espaço da sala de aula, pois pode haver ligações diversas entre essa dinâmica social e as formas de organização do trabalho escolar, as quais não podem ser desconhecidas.

A segunda pesquisa focalizou o trabalho docente realizado em uma escola localizada em uma favela do Rio de Janeiro. O objetivo geral da pesquisa era verificar o tipo de prática pedagógica que interferia de forma positiva no desempenho escolar das crianças das camadas populares.

A coleta de dados se desenvolveu durante o ano letivo de 1984, envolvendo observações de seis turmas das quatro primeiras séries do 1º grau. Foram feitas também observações da entrada e saída dos alunos, do recreio, da sala dos professores, reuniões pedagógicas, de conselhos de classe, de reuniões de pais e de festas escolares. Além das observações, foram feitas entrevistas com as seis professoras, com a diretora, com a assistente de direção, com a supervisora e a merendeira da escola, com três ex-diretores, dois ex-professores e com pais pertencentes à diretoria da Associação de Moradores da favela. Houve ainda entrevistas coletivas com os alunos das turmas observadas. O campo de observação foi ampliado, em relação à pesquisa anterior, nesta pesquisa abarcando grande parte do espaço escolar

Os resultados mostraram haver uma diferença muito grande entre as séries iniciais (1ª e 2ª) e finais (3ª e 4ª) quanto à organização das crianças na sala, às formas de ensinar, à rotina de trabalho e à relação professor-aluno.  Foi justificado pela presença de um projeto pedagógico, fundamentado na perspectiva de Paulo Freire, que vinha sendo implementado nas 1ª e 2ª séries, com acompanhamento da supervisora da escola e que seria posteriormente estendido às demais séries. Esse projeto envolvia um trabalho coletivo dos professores, coordenado pela supervisora, implicando em reuniões semanais para discussão, análise e revisão das práticas de sala de aula, assim como para planejamento de atividades comuns, troca de materiais e avaliação dos resultados de aprendizagem.

Outro resultado encontrado foi a existência de uma estreita relação entre a escola e a comunidade. Havia uma abertura para a participação dos pais em atividades escolares assim como na discussão de questões pedagógicas ou discutir questões de interesse da comunidade através da Associação de Moradores da favela.

Um ponto que estava relacionado a disciplina, demonstra que todos os funcionários da escola estavam empenhados em sua limpeza, organização, o que se refletia na disciplina e entusiasmo das crianças pela aprendizagem.

Comparando a pesquisa anterior a segunda teve a realização de uma análise mais articulada das dimensões que compõem o dia-a-dia da escola, mas dificuldades de explicar teoricamente alguns pontos sobre a dinâmica de trocas e de relações que constitui a vida escolar. A autora destaca a contribuição que a pesquisa do tipo etnográfico pode trazer para um entendimento das inter-relações entre o dentro e o fora da sala de aula

A terceira pesquisa foi focada justamente na análise das relações sociais expressas no cotidiano escolar, preocupando-nos mais atentamente com os movimentos de dominação resistência que nele estão presentes. Foi escolhida uma escola da rede pública da cidade do Rio de Janeiro para a coleta dos dados durante o ano letivo de 1986, em que foram realizadas observações em turmas da 4ª série, entrevistas e contatos informais com o pessoal técnico da escola, com pais, com as professoras das turmas observadas e com seus alunos.

O estudo possibilitou afirmar a complexidade da prática educativa. Deve-se analisar, observar os vários elementos que compõem o espaço escolar de uma forma integrada. A análise da prática escolar cotidiana não pode, portanto, desconhecer essas múltiplas articulações, sob pena de se tomar limitada, incompleta. Os fatos e experiências que ocorrem dentro de uma escola é resultado das articulações das relações sociais, dos indivíduos e dos grupos presentes neste ambiente.

Algumas reflexões sobre as Práticas Pedagógicas Bem Sucedidas são ressaltadas pela autora:

Qual o critério para escolha dos bem-sucedidos? Como decidir quem são os professores, as escolas ou as práticas bem-sucedidas? A ela se poderia responder, dizendo que, ao optar por uma abordagem qualitativa, o pesquisador deve ter muito claro que deve justificar suas escolhas, fundamentar suas opções, explicitar seus pontos de vista.


Outra crítica que aparece quando se discutem as práticas bem-sucedidas é sobre um risco possível de isentar os órgãos públicos de sua responsabilidade em assegurar condições condignas de trabalho ao professor, quando se mostra que mesmo em condições as mais adversas alguns professores conseguem realizar um bom trabalho. Isso talvez pudesse reforçar uma atitude de falta de compromisso do Estado com as questões da educação. Pode-se, finalmente, criticar a metodologia usualmente empregada nessas pesquisas, que muitas vezes se limitam a descrever as práticas dos docentes, seja através da observação direta das situações de sala de aula, seja através dos seus próprios depoimentos.

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